FOTOPOEMA
TAÇA DE VINHO AO MEIO
A VIDA INTEIRA...
Texto premiado, inserido na coletânea Devemos ver com os olhos livres, Academia Brasileira de Letras e Folha Dirigida
*Devemos ver com os olhos livres
Como proteger nosso olhar do sol implacável de tudo? O sol permanente que, a cada segundo, nos compõe e desmancha em moldes de gente? Onde os óculos, as lentes? Onde o filtro lúcido que nos proteja dessa luz bombástica de orientações ininterruptas? Desorientações? Essa luz multifacetada que nos faz ser o que somos... O que não somos? O que querem de nós?
Quem seríamos se não houvesse tantas vozes norteando nossos passos? Tantas TVs e jornais... vizinhos e dogmas? Ouvimos pai e mãe e acolhemos, sem triagem, todas as gerações que nos trazem em sua bagagem de crenças. Tudo o que nos dizem com o movimento ou a aridez de seus corpos. Seus corpos e suas mensagens subliminares. Às vezes, paradoxais. Acolhemos, mesmo que inconscientes, sua fala, seus valores e verdades. Quando, enfim, a filtragem?
O que não é meu na certeza inabalável de meu mestre? O que não é meu na frase-feita que, sem pensar, repito? No preconceito que, mesmo incrédulo, multiplico? O que é meu na tradição de minha avó e seus chinelos bordados? O que nunca foi meu nos medos de meu pai? Como herdar o sorriso de minha mãe e sua vontade de alegria? O que, afinal, quero que me pertença e o que é dejeto e melancolia?
Que joias de família merecem adornar meus sonhos? Que ideais se harmonizam com este tango tocando em meu peito? Tantas quinquilharias nesses baús herdados! Quantas correntes ainda carrego nestes meus pés alforriados!
No entanto, sei que podemos escolher com olhos acordados, desacorrentados... olhos alados de anjo. Podemos nos apropriar do nosso olhar. Resgatar o nosso rosto soterrado. Podemos rejeitar o discurso rançoso, o mau humor das redondezas, a mentira da notícia, o império da pobreza. A imposição da tristeza. A violência cotidiana das entrelinhas... essa que cresce e vira soco. Essa que cresce e vira faca urbana, bomba e míssil. Essa que, sorrateira, nos chega, diluída como pó, invisível. Inofensiva. A violência sutil da resposta seca, da não-resposta, do não, do grito, da pressa, do estresse, da fala fria, da falta de tempo, de abraço e de harmonia.
Escolher é dar à luz o desejo despido. Lavado. O sumo de tudo o que, no balancete do dia, mais se aproxima da nossa alegria. No entanto, para escolher, precisamos libertar o olhar viscoso. Desintoxicar a alma de tantos ditos, e ver a paisagem com olhos de cego. Com olhos de tato e cheiro. Ver a paisagem como quem salta do ventre, desinformado, solitário e são.
Carmen Moreno
*Frase de Oswald de Andrade
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