Que alegria participar do projeto Poesia na Pandemia! A conversa com Luis Turiba foi deliciosa, pois ele sabe conduzir entrevistas de maneira original e espontânea. Abaixo, nosso bate-papo, que me levou a reflexões profundas sobre temas importantes:
A Poesia na Pandemia
CARMEN MORENO ESTÁ NO PROTAGONISMO DA POÉTICA/ LITERÁRIA FEMININA NO BRASIL Luis Turiba
Ela não é uma loba solitária. Mulher morena, de olhos vivos que busca o diálogo, cabelos nos ombros com o nome de Carmen, está fadada a intensidades. Mas essa a que me refiro, tem um agravante: chama-se Carmen Moreno e é poeta até quando escreve contos ou romances. E tem mais: Carmen faz parte de um time de mulheres (não só brasileiras, é verdade) que estão se preparando para tomar o poder da Literatura, não só da escrita, mas de toda a estrutura literária. A começar pela Academia Brasileira de Letras (ABL), casa de Machado de Assis. Brincadeiras à parte, a poeta, contista e romancista carioca premiadíssima, membro do PEN CLUBE do Brasil, nos revela nesta entrevista para a série “A Poesia na Pandemia” que faz parte do Novo Poder Feminino que está em formação na Literatura Brasileira. Exemplo temos muitos, mas vou citar o mais recente: a grande vencedora do Prêmio Jabuti de Poesia, a escritora pernambucana Cida Pedrosa ganhou o Livro do Ano do Prêmio Jabuti 2020 com o livro de poesia (vencedor da categoria) “Solo para Vialejo”, lançado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). Mas vamos ver o que Carmen tem a explicitar sobre esse movimento que cresce a olhos vistos na Literatura brasileira. Diz ela: “Bastaria um olhar mais atento para a história da própria literatura, que não está desconectada das limitações sociais seculares impostas às mulheres. Muitas autoras utilizaram pseudônimo masculino ou abreviaturas para publicarem seus livros! Mas participar do Mulherio das Letras (que hoje conta com mais de 7.000 mulheres, entre escritoras, editoras, revisoras, designers, e uma série de profissionais envolvidas com o livro, sua produção, e com a promoção de espaços para mulheres no universo editorial) me fez perceber esta realidade de forma inequívoca. E me inserir em sua dinâmica de pensamento, expressão, acolhimento e ações – inclusive integrando diversas coletâneas, tem sido muito importante.
Turiba, desculpe-me se me estendi demais, porém a pergunta foi oportuna para que eu pudesse manifestar meu olhar crítico sobre estas desigualdades, que, embora estejam sendo superadas, funcionam ainda como formas sutis de opressão e violência (conforme abordamos na pergunta anterior), pois que dificultam e, muitas vezes, impedem a manifestação artística de criadoras absolutamente geniais, e de todas as outras que merecem atuar, com dignidade, em esferas que lhes proporcionem oportunidades iguais de expressão e expansão profissionais.“ Carmen Moreno faz parte da cena cultural/poética carioca, sempre participando de saraus, recitais, apresentações e papos sobre “o fazer e o desenvolver” poemas e poesias. Aproveitou a freada da pandemia, para rever e reavivar os originais do seu novo livro “Sobre o Amor e Outras Traições, no prelo, a sair pela Patuá de São Paulo. Toca com o irmão Tanussi Cardoso e e o poeta Igor Fagundes, o projeto “Poesia no Centro”, que agora vai ao ar em lives pela rede digital.
Mas, enfim, vamos ouvir o que nossa poeta Carmen tem a nos dizer: PERGUNTAS
P- Afora os irmãos Campos, que fizeram juntos o longo e radical programa da Poesia Concreta no Brasil; raramente conhecemos outra irmandade tão afinada na poesia como você e seu querido mano Tanussi Cardoso. A sensibilidade sobrou na família de vocês e transbordou em lindíssimos versos. Sigamos: antes da peste aparecer ameaçando e assustando a todos, vocês estavam tocando o projeto “Poesia no Centro” que teve de ser interrompido no auge. Pergunto: como se uniram para enfrentar este período tão sombrio da história da Humanidade e do Brasil? Que papel a poesia assumiu para a sua sobrevivência na pandemia? Teremos um novo livro no pós-vacina editado pela Patuá? Ainda este ano?
C.M. - Querido Turiba, tenho um poema antigo que retrata bem esta oscilação da vida a qual temos de nos adaptar. Não no sentido passivo ou conformista, mas buscando a combinação movimento e aceitação: TRILHAS: A VIDA, ESSA ESTRANHEZA/ ÀS VEZES, BECOS ESCUROS/ ÀS VEZES, BOCAS ACESAS. Vivenciamos, atualmente, a primeira fase a que se refere o poema. Muitos becos. E escuros! Na esfera política, nas relações humanas... o mundo inteiro tem enfrentado, ironicamente (e não por acaso), um breu globalizado. Então me ocorrem duas citações que costumam fortalecer e impulsionar minha esperança e coragem. Uma delas foi psicografada pelo médium Chico Xavier: “Quando a noite aparece é que os olhos dos homens conseguem divisar o esplendor das estrelas”. A outra me surgiu em sonho, há muitos anos, na véspera de uma grande turbulência em minha vida: “Obstáculos são montanhas de gelo que Deus ergue para que o Sol nos ensine a derretê-las”. Acolhi as últimas palavras já acordada, enquanto saltava da cama para buscar caneta e papel para anotar a mensagem - de autoria anônima. Ambas estão inseridas no Capítulo VI, “Palavras do Alto”, do meu livro de poemas Para Fabricar Asas (Ibis Libris Editora). Tanussi e eu aprendemos com nossa mãe, Carmen, que nos deixou em corpo aos 98 aninhos, a extrair da dor algo positivo. Sofrer, sim, pois é inevitável e necessário ao autoconhecimento e ao amadurecimento. Mas entendemos que seja fundamental recriar o sofrimento, transformando-o em força. Este legado amoroso de Carmen está no olhar que lançamos ao mundo, e permeia também nossas criações poéticas. Mas nada disso é simples e fácil, sabemos. A arte nos ajuda e salva. O amor incondicional que sentimos um pelo outro e nossa união representam movimentos de construção: superação de diferenças, disponibilidade para trocar, crescer e aprender juntos. E, nesta pandemia, cada um de nós, a seu modo, está buscando saídas singulares para o enfrentamento das dores e dos inevitáveis obstáculos. Nada fácil, meu poeta! Logo nas primeiras semanas da pandemia, iludida de que poderia entrar em contato direto com as tenebrosas e contraditórias notícias sobre o vírus, experimentei um estado de quase pânico. Tempos depois, comecei a colocar em prática minha filosofia de transformação da dor através da criação. Então, me debrucei sobre a produção do meu romance de autoficção, A Casa da Louca, inativo há anos, em função das horas de dedicação ao magistério, ao meu novo livro de poemas, e a outros projetos. O título faz menção ao magnífico “A Louca da Casa”, da espanhola Rosa Montero. Enfim, a pandemia e seus desdobramentos danosos (estruturais e emocionais) foi inserida em meu processo criador, imprimindo ao livro brilho e densidade especiais - o que tem acelerado seu percurso em direção à finalização. Meu livro de poemas, Sobre o Amor e Outras Traições, no prelo pela Patuá, também foi concluído e entregue à editora durante a pandemia, quando minha produção poética se intensificou de maneira absoluta. Acho fundamental deixar escoar e ecoar a dor em símbolos. A dor represada é promessa de avalanche, incontrolável e intraduzível, diante de qualquer mínima e distraída fresta. Não sei se este novo livro de poemas será publicado ainda em 2020, mas não tenho pressa. Ele está lindo! Maduro, intenso, e em boas mãos. É o que importa. E, para minha felicidade e honra, apresenta textos belíssimos de Antonio Carlos Secchin (quarta capa), Constância Lima Duarte (orelha), Cecília Costa (prefácio) e Tanussi Cardoso (apresentação).
P - “Prepara-se o crime aos poucos, no quarto rosa”. Você tem um poema que considero impactante e ao mesmo tempo cruel cujo título já diz quase tudo: “Tratado sobre a mulher morta”. O feminicídio, os maus tratos domésticos e a violência contra a mulher, fatos tão denunciados e flagrados hoje em dia, como entram no seu cardápio poético?
C.M. - Minha obra, em verso e prosa, reflete as inquietações, os conflitos, os sentimentos humanos. Por consequência, acaba pontuando temas sociais. No final dos anos 80, início da década de 90, participei intensamente da efervescência dos recitais de poesia do Rio de Janeiro, em eventos que lotavam bares, praias, espaços e instituições culturais, tais como o Parque Lage e a ABL. Um dos meus poemas, muito bem acolhidos pelo público daqueles eventos, aborda a violência contra a mulher: “Terra dos Homens” foi publicado inicialmente na “Antologia da Nova Poesia Brasileira”, organizada pela grande Olga Savary, que nos deixou recentemente. Ou seja, há muitos anos este tema já me impressiona, revolta e reclama expressão. No meu próximo livro, Sobre o Amor e Outras Traições, o capítulo V, “Outras Traições”, é dedicado exclusivamente ao assunto. Participo da coletânea “Sem Mordaça”, a ser publicada pela editora Nandyala, cujo tema é a violência de gênero. Antologia bilíngue, organizada no Brasil por Christina Ramalho, e em Cuba por Caridad Atencio. Meus poemas citados acima (e outros) estão inseridos neste projeto maravilhoso, que reúne poetas e poemas bastante expressivos. Turiba, a violência contra a mulher, as agressões físicas, psicológicas, e os homicídios cresceram muito nos últimos anos. A misoginia e o machismo encontraram espaço para atos antes escamoteados pelo “politicamente correto”. Palavras e atitudes que antes seriam motivo de vergonha atualmente são expostas por alguns homens com orgulho, como medalhas. Ou seja, por razões que não preciso expor neste espaço, percebo que, hoje, alguns sentem-se estimulados, e até autorizados a cometerem atos grosseiros e violentos contra mulheres. Por outro lado, há também uma resposta, uma contrarreação, por parte das mulheres e de todos aqueles que não compactuam com injustiças, covardias e desumanidades.
P - Que vozes femininas você destacaria na poética brasileira de 2020? C.M. - Tenho lido essencialmente mulheres: poetas, prosadoras e ensaístas. Lido e assistido. Atualmente, há vídeos, lives... muitas maneiras de conhecermos produções incríveis - embora minha paixão seja o livro. Não expresso aqui preferências, mas os nomes de algumas autoras que visito, em diversos gêneros: Grada Kilomba, Djamila Ribeiro, Marcia Tiburi, Inez Cabral, Luciana Hidalgo, Conceição Evaristo, Rosângela Vieira Rocha, Helena Arruda, Ieda de Oliveira, Mariana Ianelli, Solange Padilha, Suzana Vargas, Noélia Ribeiro, Rosalia Milsztajn, Alexandra Maia, Marcia Barroca, Thereza Christina Rocque da Motta, Claudia Roquette-Pinto, Astrid Cabral, Raquel Naveira, Divanize Carbonieri, Chris Herrmann, Ana Elisa Ribeiro, Rosane Carneiro, Eliza Morenno, Maria Helena Latini, Alexandra Vieira de Almeida, Christina Ramalho, entre tantas outras criadoras contemporâneas admiráveis, não citadas aqui. Claro, continuo lendo escritores também. A qualidade da obra será sempre o mais importante. Mas quando percebo minhas leituras atuais, vejo nitidamente a predominância de mulheres. Nossas referências literárias são essencialmente masculinas. E, desde que ingressei no coletivo literário feminista MULHERIO DAS LETRAS, em 2017, organizado inicialmente pela excelente escritora Maria Valéria Rezende, ficou evidente para mim a discrepância, no universo literário, de representatividade, entre homens e mulheres. Os homens são privilegiados em todos os espaços. De forma geral, não há paridade nas composições de bancas de jurados, nas premiações, nos convites para palestras, mesas de debates, e nas escolhas de livros a serem publicados. Em pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, doutora em Teoria Literária pela UNICAMP, no livro “Literatura Brasileira Contemporânea: um território contestado”, registra-se que 72% dos autores publicados no Brasil são homens. Mas o que poderia ser óbvio para algumas escritoras, inclusive pelo conhecimento do processo histórico geral, talvez eu atribuísse, inconscientemente, a fatores individuais, e não a um processo estrutural. Mas as discussões sobre o tema, pesquisas e estatísticas me fizeram perceber que muitos dos obstáculos que enfrentei (e enfrento) de afirmação, na minha longa e produtiva carreira de escritora, têm ligação com o fato de eu ser mulher em um universo de grande concorrência, viciado em privilegiar homens. Sem perceber, inventei para a literatura uma aura de proteção que a poupava dessas injustiças e desigualdades. Como se vantagens e prerrogativas fossem paradoxos impensáveis à dinâmica do ambiente literário em que eu estava inserida. Na minha ideia romantizada com relação à literatura, aos escritores, à arte e à sua “natural” propensão à justiça e à igualdade, isto não funcionava como uma interferência real. Na verdade, a naturalização de qualquer circunstância desenvolve uma espécie de cegueira, mesmo diante realidades históricas incontestáveis. A predominância de homens nos espaços de destaque, decisão e poder não poderia ser diferente na literatura. Bastaria um olhar mais atento para a história da própria literatura, que não está desconectada das limitações sociais seculares impostas às mulheres. Muitas autoras utilizaram pseudônimo masculino ou abreviaturas para publicarem seus livros! Mas participar do Mulherio das Letras (que hoje conta com mais de 7.000 mulheres, entre escritoras, editoras, revisoras, designers, e uma série de profissionais envolvidas com o livro, sua produção, e com a promoção de espaços para mulheres no universo editorial) me fez perceber esta realidade de forma inequívoca. E me inserir em sua dinâmica de pensamento, expressão, acolhimento e ações – inclusive integrando diversas coletâneas, tem sido muito importante. Turiba, desculpe-me se me estendi demais, porém a pergunta foi oportuna para que eu pudesse manifestar meu olhar crítico sobre estas desigualdades, que, embora estejam sendo superadas, funcionam ainda como formas sutis de opressão e violência (conforme abordamos na pergunta anterior), pois que dificultam e, muitas vezes, impedem a manifestação artística de criadoras absolutamente geniais, e de todas as outras que merecem atuar, com dignidade, em esferas que lhes proporcionem oportunidades iguais de expressão e expansão profissionais.
P - Além da poesia, você tem livros de contos e romances. Onde você se sente mais confortável, em casa? Onde é sua morada na literatura brasileira? C.M. - A literatura é a minha grande morada. Mas como minha alma é de poeta, levo a poesia para outros gêneros literários. Ou a poesia me leva. O poeta costuma ter um olhar enviesado, incomum e profundo. A construção dos versos é indireta, simbólica. Trabalhar a linguagem, até extrair dela o sumo do sentimento, da ideia, do conceito é um exercício apaixonante, que a poesia me ensina. Contudo, meus livros de contos e meus romances revelam com nitidez este ensinamento da Mestra. Levo da poesia para a prosa a concisão, o cuidado com a linguagem, e a imersão profunda nos sentimentos, buscando trazer à tona imagens e construções originais, mas evitando enfeites ou firulas. Prezo a verdade, na vida e na arte. Em 1997, dois anos depois de ter lançado meu primeiro romance, Diário de Luas (Rocco), a mesma editora publicou meu livro de contos Sutilezas do Grito. Sobre ele, em resenha para o jornal O Globo, a poeta Olga Savary escreveu: “(...) jovem mestra da prosa poética brasileira (...) linguagem instigante, concisa e enxuta. Texto burilado, vigoroso e sofisticado (...)”. Outras críticas sobre meus livros em prosa também ressaltaram algumas características destacadas acima. Na verdade, todos estes traços representam a poesia enquanto origem, paixão e aprendizado na minha criação literária. P- Tenho pedido aos meus entrevistados que deixem para os seus leitores um texto inédito, de preferência um poema curto e novo. Posso contar com essa honra? C.M. - Querido Turiba, agradeço imensamente o convite para participar do Projeto Poesia na Pandemia. Foi muito prazeroso conversar com você, e com os leitores, a partir de perguntas tão originais e interessantes. Um grande abraço!
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