RESENHA:
LOJA DE AMORES USADOS, poesia (Multifoco), de Carmen Moreno
Por: HARON GAMAL - Crítico literário, professor e doutor em literatura brasileira pela UFRJ
(Texto publicado na Revista
Folha Carioca - dezembro de 2010
Contato: hjgamal@ig.com.br
“O fim abraça tudo”, menos a poesia
A primeira parte do livro Loja de amores usados, de Carmen Moreno, chama-se "Morte Versus Vida", eis um trecho do primeiro poema, Movimento: "O fim abraça tudo / que mal se inicia. / Qual feto morto, / na barriga do dia." Versos prenunciando a vitória da morte, que, inclusive, aparece em primeiro lugar no próprio título.
Poderíamos pensar que para essa devastação impossível de ser contida nada restaria. Mas, mergulhando livro adentro, envolvendo-se no ardor da hora poética, logo se percebe que essa morte, que a tudo e a todos devora, não consegue levar consigo a poesia. Permanece esta como marco de uma vitória, como a vida dos deuses olímpicos, que se não eram tão eternos assim, ao menos o são enquanto duram. E duram até hoje.
Num idioma que, entre tantos poetas difíceis de serem hierarquizados, há um Camões e um Pessoa, a própria opção de escrever poemas torna-se uma temeridade. Mas Carmen Moreno arrisca-se, não teme o desafio, parecendo talhada para tal ofício. A epígrafe inicial, colhida na obra de João Cabral, aponta o propósito: "gosto de chegar-se ao fim, de atingir a própria cinza."
Em tudo que escreve, ela não deixa ideias nem modos de dizer na superficialidade:
"Ninguém parte: aparta-se de nós / apenas o palpável. / Perde-se a casca densa do amado ser. / Seus sonhos, mirados do Alto, / a terra não morde."
"Arriscar é ser mais que o medo."
"Busco o poema como quem se esparrama, / tateando a cama vazia. / Quero, no colo da palavra, / a cor que falta no dia."
Na segunda parte, "Ecos da Casa", os poemas percorrem o universo da memória:
"A família se esvai, / por entre os dedos dos anos. / Encardida fotografia. Grande útero decomposto."
Trata-se, na verdade, de uma memória drummondiana, lembranças que não apenas transmitem saudade, amargor de uma vida sempre vulnerável a perdas, a separações, ao silêncio, mas essa memória também revela o peso da ancestralidade, que permanece em cada um e que é impossível ser descartada.
"A família tomba sobre nós com seus guardados. / Quem seríamos, sem tantas vozes compondo nossos passos?"
Versos que nos lançam à presença perene daqueles que nos antecederam, presenças em pequenos gestos, olhares, palavras perdidas, impossível se livrar do passado, impossível a autossuficiência:
"Meu pai morava no desamparo. / Sorte, que a casa amparava sorrisos nas frestas da cal, / nas tréguas do caos. / E havia alegrias resistentes nos cantos dos quartos, / nas rosas das janelas... / E havia o movimento dos irmãos, / e as mãos da mulher partindo pedaços de pão, / para não perdermos o caminho."
Mais adiante: "Tenho minha mãe entre as pernas, / Há anos tento pari-la, pari-la de mim, / mas minha mãe não se desgarra."
E, ainda uma vez, a própria poesia surge (metaforicamente, é claro) como um meio de salvação, uma barreira capaz de nos proteger das mazelas do dia-a-dia:
"Vem, poema, me salva do sorriso de minha mãe, / da loucura da minha irmã."
Momento em que alegria e loucura se unem, porque, tanto no universo familiar quanto no percurso da memória, a palavra surge como meio de organização do mundo, não a palavra comum, mas a da poesia, a palavra surpreendente, a palavra até mesmo impossível.
Na terceira parte, "De Cama e Cortes", o livro enfoca o papel do amor, também como antídoto à solidão, ao caos provocado pela inexplicabilidade da vida. A sedução se faz presente como tentativa de driblar a morte:
"Os amantes se penetram. / Injetam-se um no outro no outro, e perdem o rosto."
"De que recanto do amor o pássaro da morte / levou no bico o teu beijo."
A temática da morte, como nos grandes poetas de nossa língua, quase sempre se faz presente no texto de Carmen, ora apontando a dualidade amor versus morte, ora vida versus morte, que na verdade tem como origem o próprio amor.
Apesar da divisão do livro em partes, torna-se impossível ocultar temas recorrentes. Memória, amor e morte sempre reaparecem para configurar uma tessitura poética coesa.
"Acariciar sonhos, / enchendo gavetas de guardados. / Amarelados papéis, roídos por baratas e tempo."
A última parte, "Sobre Saias e Sobre (saltos)” enfoca especificamente a condição feminina, apresentando questões do tempo, que apontam o papel da mulher na contemporaneidade:
"A mulher que mora em mim tem tantos mundos, / que todos os homens sou eu." Aqui a mulher tornando-se uma entre todos os gêneros.
"O amor roçou no tempo até esgarçar-se de vez, por excessos. / Quando caminho as coxas roçam uma na outra, por excessos. / Cortar gorduras é exercício estóico (às vezes esmoreço e espreguiço). / Mas tenho apreço pela assepsia da alma: limpo desde menina o lixo entranhado na história."
Ou ainda: "escondo a barriga sem lipo, / mas a alma - renovada - mostra a cara." Neste trecho, apresentam-se as exigências da modernidade em oposição ao desejo do eu poético pela autenticidade.
E há também a crítica ao universo masculino, este equilibrado no fio tênue entre o desejo do macho e sua fragilidade, a inobservância do masculino pelo próprio reflexo, difícil de ser admitido:
“viril de crachá / ele é macho de etiqueta / lançar-se no pódio / é sua muleta / Para qualquer suspeito / ele arma sua mira / persegue o gay / que o espelho lhe atira!”
Carmen Moreno é autora de vários livros, tanto de ficção como de poesia. Este Loja de amores usados vem apenas confirmar um talento que há muito se destaca, e revelar uma poeta que sabe trabalhar tanto com os temas universalmente abordado pela poesia, como com aqueles que fazem parte do tempo presente.
Loja de amores usados
Carmen Moreno
Editora Multifoco, 119 páginas
Em breve, esta resenha será publicada no jornal Folha Carioca.
Haron Gamal
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