Carmen Moreno ENTREVISTA HISTÓRICA Nº 074 – 10 12 2009. Por Selmo Vasconcellos
- Carmen Moreno
- 18 de jul. de 2024
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CARMEN MORENO – Rio de Janeiro, RJ. Carmen Moreno
ENTREVISTA HISTÓRICA Nº 074 – 10 de DEZEMBRO de 2009.
Poeta e ficcionista carioca (contista, romancista e dramaturga), premiada em diversos gêneros literários.
PUBLICOU: O Primeiro Crime, romance policial (Rocco); Diário de Luas, romance (Rocco); Sutilezas do Grito, contos (Rocco); O Estranho, contos (Fivestar); De Cama e Cortes, poesia (UERJ) e A Erosão de Eros, dramaturgia (RioArte). Seu trabalho integra várias coletâneas, entre elas a Antologia da Nova Poesia Brasileira, org. Olga Savary (Hipocampo); Mais 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira, org. Luiz Ruffato (Record); Quem Conta um Conto – Estudos Sobre Contistas Brasileiras Estreantes nos Anos 90 e 2000, org. Helena Parente Cunha (seus livros O Estranho e Sutilezas do Grito estão entre os objetos de estudo desta obra).
ALGUMAS PREMIAÇÕES: Prêmio Casa da América Latina (Concurso de Contos Guimarães Rosa), promovido pela Rádio França Internacional, Paris. O conto Dora, premiado por este concurso, foi adaptado para o cinema por Luiz Rangel, participando, como média-metragem convidado, do Festival Internacional de Cinema de Gramado 2009; Bolsa de Incentivo ao Escritor Brasileiro, MINC/Biblioteca Nacional, 1994; Prêmio de Desenvolvimento de Roteiros Cinematográficos de Longa-Metragem (1ª fase: Argumento), MINC/Secretaria do Audiovisual, 2001 - o roteiro A Delicadeza das Facas é uma adaptação, realizada pela autora, do romance Diário de Luas, acima citado. O referido livro também foi tema do Mestrado de Lilian Gonçalves de Andrade: “Diário de Luas: um Künstlerroman no universo literário de Carmen Moreno”, sob orientação da Profª Drª Eliane T. A. Campello, da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), RS, 2006
Participa de recitais de poesia, e realiza palestras em congressos e projetos culturais do País, tais como, a Bienal Internacional do livro, Rio de Janeiro/ RJ; Congresso Brasileiro de Poesia e Encontro Latino-Americano de Casas de Poetas, Bento Gonçalves/ RS; Forum de Ciência e Cultura, UFRJ, entre outros.
Leciona Artes Cênicas e atua como Professora de Sala de Leitura, pela Secretaria Municipal de Educação do Rio, desenvolvendo projetos de promoção do livro e da literatura. Trabalhou para o PROLER (Programa Nacional de Incentivo à Leitura), Ministério da Cultura – Biblioteca Nacional.
SELMO VASCONCELLOS - Quais as suas outras atividades, além de escrever?
CARMEN MORENO - Leciono Artes Cênicas, desde 1995, em escola da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Trabalho, também, como professora de Sala de Leitura, desenvolvendo projetos de promoção do livro e da literatura.
SELMO VASCONCELLOS - Como surgiu seu interesse literário?
CARMEN MORENO - O poema, abaixo, resume minha paixão pela literatura. Está inserido no meu livro Loja de Amores Usados (Multifoco), no prelo:
ESCREVER:
TRANSFORMAR A DOR EM LEVEZA,
E QUALQUER LIXO HUMANO EM BELEZA.
Escrever é um exercício de autoconhecimento e catarse profundos, do qual sempre necessitei, desde menina, sem perceber o quanto a ferramenta da escrita sustentava e impulsionava minha lucidez e alegria. Hoje tenho plena consciência da importância da criação literária na minha “salvação” pessoal. Tive uma infância feliz, pois a felicidade é um talento que herdei de minha mãe Carmen, mulher que, até hoje, aos 92 anos, é uma menina bem-humorada e criativa. No entanto, não foi uma infância tão fácil, pois convivi com a esquizofrenia de minha irmã. A literatura me ajuda a realizar, de forma lúdica e intensa, minha travessia existencial, sempre ao encontro do meu semelhante. Não é um mero expurgar de fantasmas, e tampouco uma exposição de umbigo. A escrita é a terra do encontro. Parto de mim para o universal. Não construo um baú de experiências memorialistas, mas um moinho que as tritura e as transforma em comunhão e salto.
Através de seus símbolos poderosos, consigo mergulhar em mim e trazer à tona o outro, de forma densa, clara e inédita. Meus personagens (na prosa) são absolutamente intensos e reais. Existem, com todas as contradições e neuroses humanas. Fico feliz quando leio este tipo de comentário nas resenhas sobre meus livros, pois os personagens pulsam com a nitidez da vida que eu lhes empresto. Não apenas a minha, mas a que apreendo na íntima observação e absorção do meu semelhante.
Comecei a escrever poesia e depois me encantei pela prosa, que apresenta características marcantes do meu exercício como poeta. Meu irmão, Tanussi Cardoso, foi meu primeiro mestre e ídolo. Na antiga escola primária, aos sete anos de idade, sempre que a professora abria espaço, ao final das aulas, para atividades artísticas, levava seu primeiro livro para ler, diante da turma, orgulhosa por ter um irmão poeta. Aos 14 anos, escrevi meus primeiros versos, sob o olhar de estímulo delicado e crítico do Tanussi. Fundamental para a construção do meu próprio olhar humano e artístico.
SELMO VASCONCELLOS - Quantos e quais os seus livros publicados dentro e fora do País?
CARMEN MORENO - Na década de 80, participei intensamente de eventos de poesia teatralizada, recitais etc. Pertencia ao grupo Teatrote, composto por Tanussi Cardoso, Leila Míccolis e Eugênia Loretti. Apresentávamos nossos espetáculos em bares, como o antigo Botanic, no Rio, e em espaços culturais diversos, entre eles a Academia Brasileira de Letras. Ao final dos shows, o público procurava meus livros, mas eu não possuía nenhum. Resolvi, então, produzir os livros RUBRO e BEIJO DE COBRA (poemas), ambos de confecção artesanal, para vender nesses espaços.
Em 1993, a UERJ publicou DE CAMA E CORTES (poesia). Depois, apesar de continuar escrevendo poemas, comecei a publicar contos e romances:
DIÁRIO DE LUAS, romance (Rocco), 1995; SUTILEZAS DO GRITO, contos (Rocco), 1997; O PRIMEIRO CRIME, romance policial, Coleção Elas São de Morte (Rocco), 2003, e O ESTRANHO, contos (Five Star), 2006. Mas, principalmente devido aos prêmios que recebi, publiquei também poemas em diversas coletâneas:
Mais 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (contos), Org. Luiz Ruffato, Ed. Record, 2005;
Antologia da Nova Poesia Brasileira (Org. Olga Savary), ed. Hipocampo, RJ, 1992;
Quem conta um conto – Estudos sobre contistas brasileiras estreantes nos anos 90 e 2000, Org. Helena Parente Cunha, ed. Tempo Brasileiro, 2008. Nesta coletânea, dois de seus livros são analisados.
Revista Poesia Sempre (nº 21), ed. Biblioteca Nacional, 2006;
A Erosão de Eros – Menção Honrosa, Prêmio Stanislaw Ponte Preta 1996, ed. Rio-Arte/ Secretaria Municipal de Cultura. O texto participou de ciclos de leituras na SBAT, no Teatro Ipanema, na Casa da Gávea, e em outros espaços culturais da cidade do Rio de Janeiro. Foi encenado em 2004;
Santa Poesia Antologia Poética, ed.MMRio, 2001;
Linguagem Viva - João Scortecci Editor, SP, 1993;
Poesia Fora da Ordem - Prêmio Caetano Veloso - BA, 1993;
Mulheres (in) Versus - Massao Ohno Editor, SP, 1990;
Prêmio Escriba de Poesia - Ação Cultural, Piracicaba, SP, 1990;
Trilhas Poéticas – ed. Trote, RJ, 1986;
Água - João Scortecci & Fumiko Hayashi Editores, SP, 1979.
SELMO VASCONCELLOS - Qual (is) o(s) impacto(s) que propicia(m) atmosfera(s) capaz(es) de produzir literatura?
CARMEN MORENO - A inquietação diante de um fato, ou sentimento de dor, angústia, alegria, um arrebatamento íntimo, ou algo que precise ser revelado, denunciado, compartilhado com o mundo, para provocar deleite e reflexão. A literatura e a arte em geral, para mim, enquanto leitora, espectadora e artista, precisam me tirar do lugar, precisam provocar uma revolução interior, capaz de me fazer melhor do que eu era antes daquela vivência artística. Digo melhor, entendendo que a arte, quando nos desarruma emocionalmente, por sua beleza reveladora, nos faz dar um passo à frente. Diante de um livro, de um filme, de uma peça artística que me provoque esse tipo de impacto, não posso ser mais a mesma. É o que procuro, espontaneamente, sem premeditar, quando escrevo ou abro um livro para ler.
Quero me inserir na vida do meu leitor, desorganizar seu manancial de certezas, valores, emoções ... para que ele tenha algum tipo de insight, para que saia do ponto onde estava, para que se incomode e salte. Mesmo que me esqueça, conscientemente, logo depois. Quando a arte nos atinge, de alguma forma já se instalou em nosso arquivo invisível de experiências afetivas. E, então, acaba se refletindo, em algum momento, em nossos pensamentos e atos, mesmo que jamais reconheçamos sua influência em nossas vidas. É o que desejo sempre, enquanto leitora e escritora. Não busco, com a arte, o entretenimento. Embora ele acabe acontecendo, pois a vivência artística visceral é extremamente prazerosa.
SELMO VASCONCELLOS - Quais os escritores que você admira?
CARMEN MORENO - Em poesia e prosa: Tanussi Cardoso, Cecília, Quintana, Augusto dos Anjos, João Cabral, Clarice, Machado, Graciliano, Lima Barreto, Rubem Fonseca, Tolstói, Gogol, Kafka, Sartre, Raul Pompéia, Nélson Rodrigues, Naum Alves de Souza, Plínio Marcos etc.
SELMO VASCONCELLOS - Qual mensagem de incentivo você daria para os novos poetas?
CARMEN MORENO - Antes de mais nada, que amem a poesia do cotidiano: a vida, os seres humanos! Que observem o fluir dessa vida, minuciosamente, suas sutilezas... suas injustiças, seus contrastes, sua beleza. Precisamos, todos, ser observadores sensíveis, sobretudo se somos poetas. Embora esta já seja uma característica espontânea dos escritores genuínos. Mas é necessário aprimorá-la, com delicadeza, sempre tentando localizar e desfazer os “clichês do olhar”. Isso se refletirá em nossa obra de forma positiva, acredito. Precisamos ler muito, e com prazer; escrever, sempre, com o espírito livre, oferecendo à obra o fluxo espontâneo do inconsciente e sua riqueza de signos. Mas, no instante seguinte, focar a criação com a luz da crítica rigorosa e obsessiva, revisando, cortando, enxugando o texto, buscando a simplicidade e o impacto da essência. Reler infinitas vezes a escrita. Confiar o trabalho a outros leitores, escolhidos, antes de tentar publicá-lo. No mais, lapidar a paciência, a perseverança e a humildade.
CINCO POEMAS DE CARMEN MORENO (LIVRO LOJA DE AMORES USADOS, ed. Multifoco, no prelo):
MOVIMENTO
O fim abraça tudo
que mal se inicia.
Qual feto morto,
na barriga do dia.
*****
DESTINO
O morto não mora onde o corpo se expõe
no último traje.
Não cessa ali – sob o assédio dos olhos na caixa fria.
Jaz, na derradeira vitrine do rito,
apenas a casca oca
(que seus sonhos e medos já não guarda).
Inútil pranteá-lo, em flores e confissões,
na masmorra de mármore.
Sob a lápide, apenas pele e destroços.
Sua dor volátil migrou para o invisível, rumo ao sol.
O morto não mora no ossário,
na urna de cinzas prometida ao mar,
nos tesouros que guardava,
no quarto que o aguardava.
Não cessa no tiro, no corte,
ou quando, amorosa, a morte o elege
no sossego da noite.
O MORTO NÃO MORRE.
*****
PALAVRAS
Esse dizer filtrado,
contato reticente.
Esse mostrar ao meio,
crescendo recantos,
cartas sob a manga,
lixo sob a garganta.
Nunca o eu exposto,
desarrumado.
Descaradamente entregue ao outro.
O descompromisso da criança escorrendo...
Tão alheia do verbo a intenção!
Do pensamento à fala um abismo imenso.
Aprendi a escolher a palavra
(retrato retocado, caricatura de mim).
Manipulo-a, seletiva.
Ingênua impressão de que ela retém meu segredo.
Como se o corpo, traiçoeiro, não berrasse o não-dito.
O corpo – essa língua nua.
******
MESA FARTA
Tomara que o grão se multiPLIQUE,
ploc, ploc, pule o milho na panela.
Que o pão se espalhe e espante a
fome secular.
Que o sim rejunte a fissura dos sorrisos,
e o rio lave a secura das bocas.
Tomara que o grão se parta em mil,
e brote (são) em todas as portas.
E que, gentil e farta, a farra das sementes
seja como Deus: para todos.
******
INDAGAÇÕES SOBRE O COMEÇO DO FIM
De que recanto do amor o pássaro da morte
levou no bico o teu beijo?
De que célula adoecida alastrou-se, sorrateiro, o desencanto,
– o cancro?
Quando teu olhar nublou os raios que acendiam nosso quarto,
e a ascensão do fogo rendeu-se à gravidade,
qual balão apagado em queda lenta?
Em que subterrâneos do fim, o cinismo tecia
seu golpe absoluto?
Que atávicos ruídos neguei ouvir, curvando-me à cegueira?
Em que átimo de tempo o rumor do silêncio apartou nossos corpos?
Quando o chicote da língua roubou das palavras o afago?
Em que instante invisível, a semente apodrecida alojou-se
sob os tacos da casa, rompendo a liga dos tijolos, a proteção das telhas, o ânimo dos abraços?
Quando, em tuas veias, o gotejar do tédio virou sangramento interno, e a verdade internou-se na ala dos doentes terminais?
Quando, a mentira, adornada de afeto,
deformou o primeiro traço do teu rosto?
Com que barro o artista barroco erigiu, na praça do meu peito,
tua máscara verossímil (tão bem talhada),
tombada, de súbito, no chão do deserto?
Quando (analfabeto de mim) não pude ler nos teus gestos
a sílaba traiçoeira?
Quando o bafo do abandono mudou o hálito das bocas,
e a mudez (ora implacável)
lançou nas salivas o gérmen do último verbo?
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